É extraordinário! disse Demétrios, que olhava sem compreender. Que faz esta gente aqui aos gritos?

O fim da sua pergunta perdeu-se sob um enorme clamor de alegria: a janela principal do palácio, a que dava para um balcão de ferro, acabava de se abrir e dois soldados, vestidos com túnicas verdes, apareceram, arrastando um homem amarrado que uivava de terror. A multidão calou-se, aguardando o que se seguiria. Foi rápido. Um dos homens de armas mergulhou uma adaga no peito da vítima e depois, enquanto retirava a arma, o seu companheiro agarrou no corpo dobrado, ergueu-o acima da cabeça num esforço hercúleo e atirou-o para a praça, onde ele se esmagou. A multidão afastou-se com uma espécie de suspiro de voluptuosidade...

No balcão, a cena renovou-se e um outro corpo apunhalado foi atirado à multidão, ao mesmo tempo que, entre as seteiras, o estandarte de Cesare Petrucci, magistrado da justiça, era desfraldado para indicar que a força estava do lado da Lei e que chegara a hora das represálias...

Demétrios não teve tempo de perguntar de novo o que significava aquilo, ocupado como estava a desembaraçar-se de um garoto que, a pretexto de se içar para uma janela da casa à qual ele estava apoiado com Fiora, a escalava corajosamente. A ajuda veio-lhe na pessoa de Esteban que, tendo-o visto, usara os cotovelos e os pés para se lhe juntar. Pendurando o rapaz, que berrava e esperneava, num dos porta-archotes da dita casa, o castelhano ia puxar o seu senhor para junto de si para o tirar dali quando viu Fiora.

Oh! Não é verdade!... Estou a sonhar!

Não, meu caro Esteban, sou eu mesma!

Por Dios!

Levado pela alegria, Esteban tomou a jovem nos braços e beijou-a nas duas faces. Mas já o movimento da multidão os empurrava contra a parede, tapando a frágil passagem que ele conseguira abrir para se juntar ao seu patrão.

Não conseguimos mexer-nos, meu rapaz! suspirou o grego. Temos de ficar aqui. Se, ao menos, soubéssemos porquê?

Oh, eu sei... É uma verdadeira história de loucos.

O castelhano deu o seu melhor para explicar o que se passava. Enquanto uma parte dos conjurados assaltava os Médícis na catedral, uma outra, com o arcebispo Salviati de Pisa à cabeça, recebera como missão apoderar-se da Senhoria. Quando os sinos tocaram para a Elevação, essa gente pensou que os dois irmãos estavam mortos e correu a fechar-se no palácio dos priores, ignorando que as portas em questão não se podiam abrir senão do exterior para quem não possuía as chaves. Viram-se, portanto, fechados juntamente com todos aqueles que estavam dentro do palácio. Então, Salviati mandou chamar Petrucci, que estava à mesa e que não gostou nada daquela visita. Este recebeu muito mal o prelado guerreiro, que se embrulhou num discurso confuso. Parecendo não conseguir manter-se de pé, tossia frequentemente, como que para dar um sinal qualquer.

No mesmo momento, o velho Jacopo Pazzi, pensando que os seus assuntos decorriam pelo melhor, desembocou na praça com alguns homens gritando ”Liberdade! Liberdade!”. O magistrado, que já olhava para Salviati com olhos desconfiados, compreendeu o que se passava e como um dos conjurados se aproximasse dele tranquilamente para lhe dar a notícia, agarrou-o pelos cabelos e fê-lo dar várias voltas sobre si mesmo sob o olhar pasmado do arcebispo, antes de o atirar para os braços de um guarda, ordenando a este que o prendesse. Em seguida, gritou ”Às armas! Ajuda!” com tanta força, que os oito priores e todo o pessoal da Senhoria acorreu. Depois, como só os guardas tinham armas e Petrucci acreditava estar perante uma revolução, toda a gente se precipitou para as cozinhas em busca de facas, espetos e picadores, antes de regressar à torre para ali se entrincheirar e esperar os acontecimentos.

Entretanto, os poucos conjurados fechados na Senhoria andavam de um lado para o outro à procura de uma saída. Compreenderam que estava tudo perdido quando chegaram os arqueiros e os servidores dos Médicis que escoltavam os prisioneiros feitos na catedral. Os priores, aliviados, desceram da torre para constituírem um tribunal.

E agora, Petrucci acerta as suas contas, ao mesmo tempo que as de monsenhor Lourenço! concluiu Esteban, apontando para o que se passava no balcão.

Dir-se-ia que a sua justiça era expedita e Fiora teve um arrepio ao recordar-se do ódio com que o magistrado a tratara no momento do escândalo causado por Hieronyma. Em seguida, a jovem desviou o rosto para não ver mais nada, enjoada com o espectáculo.

Mal os homens precipitados do balcão tocavam o solo, a multidão desfazia-os e erguia espetados em chuços, em forquilhas, ou até em paus, aqueles despojos terríveis para os passear pela cidade...

Vamo-nos daqui! suplicou Fiora. É insuportável!

Bem gostaria disse Esteban mas temos de ficar aqui. Como vedes, não podemos passar por esta populaça, que está ébria de sangue e que, dentro de pouco tempo, também o vai estar de vinho!

Na verdade, uns picheis a pingar já começavam a passar por cima das cabeças. Passavam-nos de uns para os outros para encorajar aqueles que decepavam os corpos, não sem antes beberem uma golada ou duas.

Preparava-se um novo acto do drama. Três homens, fortemente amarrados, acabavam de aparecer no balcão. Um deles estava vestido com um longo traje violeta.

O arcebispo Salviati! murmurou Demétrios. Também vão matá-lo sem julgamento?

Mas não estava nenhum punhal à vista. Os três condenados os dois outros eram o irmão do arcebispo e um tal Bracciolini foram pendurados pelos pés no balcão de ferro. Era, então, um modo de execução muito em voga em Florença, porque permitia que o povo gozasse uma longa agonia. E a multidão berrou de alegria ao ver o traje do prelado cair, mostrando as suas pernas e envolvendo-lhe o resto do corpo. Mas como, justamente, lhe escondia o rosto, a multidão avançou um pouco para ver melhor, ao mesmo tempo que alguns reclamavam que içassem Salviati para o pendurar pelo pescoço...

Esteban decidiu aproveitar a ocasião. Agarrou em Fiora pelos braços e arrastou-a consigo. Demétrios fechava a marcha. Na pressa de subtrair Fiora àquela perigosa barafunda, Esteban chocou violentamente contra um homem de uns quarenta anos que, com a sua estatura curta e entroncada, a grande cabeça coberta de cabelos negros, curtos e encaracolados, tinha todo o ar de camponês. Mas possuía uma testa alta, inteligente, uns olhos escuros particularmente penetrantes e o seu traje, se bem que cheio de numerosas nódoas, era de bom tecido. De braços cruzados, observava o espectáculo perfeitamente impassível quando Esteban quase o atirou por terra e este recebeu, em troca, um murro desferido com uma rapidez fulgurante. Rufião malcriado! começou ele pronto a prosseguir o combate, mas Demétrios reconheceu-o: Desculpa o meu servidor, ser Andréa! Se ele te empurrou foi porque temos pressa de abandonar este local. Porquê? Achas, por acaso, médico, que o tratamento é demasiado rude para aqueles assassinos? Pela minha parte... O homem não terminou a frase. O seu olhar acabava de se deter em Fiora e encheu-se de uma doçura inesperada. A jovem também o reconhecera. Era Verrochio, o escultor mais célebre de Florença, um pintor de talento, também, e um fervoroso amigo dos Médicis. Não mudara nada desde a famosa giostra de 23 de Janeiro de 1475, obra-prima do seu talento genial... e onde ela, pela primeira vez, vira Philippe de Selongey. Este dia devia alegrar-te, Fiora Beltrami, porque são os inimigos do teu pai que estão a executar. No entanto, vejo-te muito pálida?

Acabo de chegar, ser Andréa, e não esperava cair no meio de um banho de sangue...

Nunca será suficiente para pagar o de Giuliano! Repara! É a vez de Francesco Pazzi. Apanharam-no em camisa na cama de uma mulher...

Era ele, na verdade. Sob as cordas que o amarravam e os vestígios de sangue dos ferimentos, estava nu, mas não perdera nada da sua impertinência. A gritaria da multidão cobria as imprecações com que ele enchia os carrascos. O povo, exasperado, sabendo que fora ele o primeiro a ferir Giuliano, pedia que lhe fosse entregue. Um instante mais tarde, atado pelos tornozelos, balouçava ao lado de Salviati, demasiado alto para ser atingido por outra coisa que não projécteis. Então, as pedras começaram a chover sobre ele...

Desta vez, Fiora não desviou o olhar. O destino daquele homem cuja mão, alguns dias antes, tocara na sua para a levar para a câmara nupcial, era-lhe indiferente. Ao vê-lo suportar o seu suplício, só tinha um pensamento: onde estaria Hieronyma?

A jovem ouviu, atrás de si, Demétrios perguntar ao escultor o que era feito do velho Jacopo, o patriarca dos Pazzi, se também ele fora preso.

Não. Conseguiu fugir com alguns homens, mas Petrucci mandou outros em sua perseguição. Bem, e vão vinte e seis, se contei bem! São horas de regressar ao meu atelier.

O que me espanta disse Demétrios, rindo é que o tenhas abandonado!

Que havia de fazer? Todos os meus alunos fugiram como um bando de pardais aos primeiros acordes da Vacca e eu vi-me só com a minha argila e os meus pincéis. Fiz como eles, mas, agora, tenho de regressar, porque tenho que fazer.

Ainda a estátua de Colleone?

Claro. Creio, no entanto, que já tenho o tema definitivo, mas acrescentou ele virando-se para Fiora sou capaz de arranjar algum tempo para ti, bela Fiora. Tenho na cabeça um bronze representando Artemisa e nenhum dos meus modelos é digno de me inspirar a deusa. Tenho de falar com monsenhor Lourenço acerca deste assunto.

O artista afastou-se, fendendo a multidão como um pequeno barco teimoso que decidiu atravessar uma barra perigosa. Os outros três seguiram-no com os olhos e depois Demétrios meteu o seu braço no de Fiora. Já te tinhas esquecido de como é Florença, não é verdade? perguntou ele, adivinhando o que lhe ia na cabeça. As piores cenas de um massacre não impedem um artista de pensar na sua obra. Quanto a ti, apesar do que se passou, nunca deixaste de lhe pertencer. Para Verrocchio, estes três anos não se passaram.

Acho que tens razão. Ele falou-me como se nos tivéssemos visto ontem. No entanto, no meio deste drama... A população de Florença gosta do drama, sobretudo quando pode desempenhar um papel. Mal o sangue e os corpos desaparecem, regressa, como se nada tivesse acontecido, ao seu comércio, aos seus amores, aos seus livros, às suas colecções

e canta a doçura da vida com o mesmo entusiasmo sincero que pôs ao transformar-se numa alcateia de lobos para uivar à morte...

Desta vez, talvez dure mais tempo disse Esteban. Florença não vai esquecer, tão cedo, Giuliano.

Sem dúvida, mas amará Lourenço ainda mais ardentemente. Um momento mais tarde, cavalgando tranquilamente as mulas que tinham reencontrado na pequena estrebaria da taberna dos marinheiros em direcção a Fiesole, Fiora pensava que Demétrios não estava totalmente certo. Que as gentes de Florença eram versáteis, descuidadas e se entregavam levianamente a excessos de entusiasmo ou de crueldade, já ela sabia há muito, mas naquele dia procurara, em vão, no meio daquele mesmo furor que em tempos quase a vitimizara, o rosto familiar da cidade de que tanto gostava.

Talvez a idealizasse demasiado no decurso dos grandes desgostos que ela lhe causara? Talvez, também, ela tivesse envelhecido durante aqueles três anos que a tinham marcado indelevelmente? Ou seria porque, simplesmente, apesar de ter sempre querido ser florentina, não o fosse verdadeiramente?

No entanto, uma coisa era certa: o sangue dos Pazzi e dos seus aliados, que ela vira derramar-se, não era suficiente, porque lhe faltava um: o de Hieronyma. Enquanto aquele monstro respirasse sob o mesmo sol, Fiora sabia que não teria tréguas nem repouso.

Então? Não era tipicamente florentino aquele gosto pela vingança, um gosto que sempre transportara em si?

CAPÍTULO XIII

LOURENÇO

De pé por trás da janela do seu antigo quarto de onde admirara, tantas vezes, os seus jardins em terraço e, mais abaixo, o panorama cativante da sua cidade que se parecia com um ramo de rosas atado pela fita de prata do Arno, Fiora procurava reencontrar a sua alma de então. Geralmente, e quando chegava a noite, o ramo transformava-se num tapete cinzento e azul, picado aqui e ali por uma minúscula estrela, uma das raras luzes acesas nas ruas.

Naquela noite, tudo tinha mudado. Naquela noite, Florença, que se recusava a adormecer, enrubescia com uma vida violenta e instintiva, como se fosse um cadinho de fundidor. Em tempos, do alto da torre de Demétrios, Fiora vira-a com o seu rosto mau e inchando de cólera, mas fora pouca coisa em comparação com o que vira naquele dia, porque, na pessoa de Giuliano, Florença acabava de perder, com o seu Príncipe Encantado, uma parte do seu coração: a mais terna. E na espécie de grunhido abafado pela distância que subia até Fiesole, a jovem pensava distinguir os gritos de morte, as maldições e os gemidos de mulheres em pranto. Queimavam-se, pilhavam-se as casas dos Pazzi e dos seus aliados, das quais, de madrugada, provavelmente, não restaria nada. Era um holocausto de amor que a cidade, furiosa e desesperada, oferecia ao seu filho querido.