Naquele dia, Giuliano juntara-se a Simonetta e talvez tivesse sido melhor? Talvez que, de mão na mão, ambos contemplassem do céu o cenário dos seus amores, mas uma coisa era certa e Fiora sentia-a em todas as fibras do seu ser: Florença nunca mais seria o que fora nos tempos em que eles se tinham amado contra a lei dos homens e contra a da Igreja, visto que a Estrela de Génova era casada mas protegidos pela sua beleza, pela sua juventude deslumbrante e por toda a alegria que faziam nascer à sua passagem. O povo adorava-os como símbolos da graça e alegria de viver de uma cidade excepcional.

Nada seria como antes. Fiora sentira-o ao penetrar naquela casa onde conhecera a maior das felicidades nos braços de Philippe. E isso devia-se menos à decoração, que não era a mesma pilhada no momento do drama, a villa fora mobilada de novo ao gosto de Lourenço do que a uma questão de atmosfera e à qualidade do silêncio.

Aquilo que Francesco Beltrami reclamava muitas vezes, quando se retirava para o seu studiolo, estava vivo, feito de palavras sussurradas, de passos em surdina, de gestos medidos por parte das vinte pessoas preocupadas em não perturbar o mestre no seu trabalho ou no seu repouso. Agora, era o vazio do silêncio... Demétrios ocupava, entretanto, aquela casa com Esteban, mas o que faltava, para além do próprio Francesco, era Léonarde, cuja presença chegava para dar alma a uma cabana de carvoeiro, era Khatoun, a gatinha sempre a ronronar e eram, também, todos os servos, que pareciam, tal como a própria casa, ter ganho raízes na terra de Fiesole, mas que a tempestade dispersara. Agora, era a negra e discreta Samia que reinava na cozinha e na casa com a ajuda de duas escravas, a Samia dos passos discretos que, outrora, fora a governanta do castelo do médico e que, muito naturalmente, retomara o seu lugar.

Fiora gostava muito de Samia, que era doce e ordenada e que a tratara bem quando Demétrios a levara para sua casa no fim do pesadelo, mas a negra nunca pertencera ao seu universo de adolescente feliz e plenamente satisfeita. Só aparecera nos tempos difíceis.

Era quase meia-noite. Porém, a despeito do dia estafante que acabava de viver, consecutivo de outros que o tinham sido menos, Fiora não conseguia dormir. Nem conseguia ficar estendida naquele leito vestido de seda branca como o leito de uma virgem, mas que nunca fora o seu. Preferiu ficar ali, de pés nus em cima de um tapete, olhando, esperando não sabia o quê.

Demétrios, depois de a ter levado a Fiesole, regressara, como prometera, para tentar falar a Lourenço. Regressara ao crepúsculo, trazendo com ele um Rocco meio-morto de fadiga que Samia alimentara abundantemente antes de o mandar deitar-se. Agora, dormia num quarto próximo do de Fiora e, no corredor, podiam ouvir-se, ao passar diante da sua porta, os seus roncos poderosos de homem cansado.

À pergunta de Fiora a propósito do Magnífico, o grego respondera:

Vê-lo-ás em breve... Reencontrar-te foi, para ele, o único conforto para a sua dor, que é profunda. A morte de Giuliano amputou-o de uma parte de si mesmo.

Em seguida, o médico falou dos cuidados com que tinham rodeado o corpo do jovem. Lavado, perfumado, vestido de negro sob a sua armadura de cerimónia, Giuliano, de mãos juntas e olhos fechados, repousava àquela hora na capela do palácio familiar num extraordinário leito fúnebre onde os lençóis eram da mesma cor, semeados de enormes ramos de violetas, das violetas que eram as flores preferidas do seu irmão e que este fazia questão de cultivar nos seus jardins. Aos pés do jovem defunto, o seu elmo emplumado de branco, as suas luvas e as suas esporas de ouro jaziam em cima de uma grande almofada de veludo púrpura.

A capela, em si, era uma obra de arte e Fiora só tinha que fechar os olhos para a rever. Ao longo das suas paredes, um grande fresco, representando o cortejo dos Reis Magos seguindo a Estrela, desenrolava-se, num fausto inaudito de cores de um brilho raro, numa deliciosa paisagem toscana semeada de castelos, ciprestes e arbustos floridos. Cavalos ricamente ajaezados, trajes bordados a ouro, coroas de pedrarias, servos adornados e alegres levando à trela leopardos, galgos da Caramânia, ou transportando presentes. O próprio Lourenço aparecia no fresco, mas sob a forma de um belo adolescente louro e de cabelos encaracolados que muito divertira Fiora, porque ninguém acreditaria

Região da Ásia Menor Meridional


que o belo Rei Mago representava, supostamente, o mais velho dos Médícis. Lourenço fora o primeiro a divertir-se e gostava de dizer que Benozzo Gozzoli, o pintor, gostava tanto da sua pessoa que se obstinava em ver nele o anjo que nunca seria...

Uma outra maravilha enriquecia aquela rica capela: uma adorável Natividade, colocada por cima do altar, obra de um monge despadrado cuja vida tumultuosa escandalizara Florença vinte anos antes. Mas Filippo Lippi tinha tanto talento que lhe tinham perdoado... até o facto de ter dado à Madonna o rosto encantador da jovem freira por quem estava apaixonado.

Sim, aquela capela era bem um quadro digno de receber o corpo do jovem príncipe e Fiora lamentou não poder ir lá rezar, porque não tinha a certeza se as mulheres da casa, Lucrécia, a mãe dos Médicis, e Clarissa, a mulher de Lourenço, estariam dispostas a encontrar-se com uma mulher que fora, em tempos, objecto de escândalo. Teria gostado de oferecer o seu tributo de lágrimas àquele que fora o seu primeiro amor, como o havia sido de Catarina Sforza. Como receberia a mulher de Girolamo Riario a notícia daquela morte que tanto desejara evitar? Conseguiria esconder o seu desgosto? No fim de contas, o próprio Riario faria má cara, porque a conspiração fracassara no seu objectivo principal: abater o senhor de Florença. O senhor de Florença continuava vivo, mais poderoso e mais amado do que nunca!

Subitamente, Fiora apurou o ouvido. O galope de um cavalo ressoava na noite, aproximava-se, aproximava-se mais... Ela ouviu um ruído de vozes: a de Esteban e uma outra, mais surda, que não identificou. Quem poderia ser àquela hora?

Rapidamente, Fiora enfiou por cima da camisa uma espécie de dalmática aberta e sem mangas que usara em tempos e que, por uma espécie de milagre, Samia encontrara, com mais algumas roupas, no celeiro, dentro de uma arca. Com a vela que ardia por detrás das cortinas do seu leito, ela acendeu um candelabro, saiu para a galeria e foi até à escadaria. Ali, deteve-se, erguendo por cima da cabeça o ramo de chamas.

Ao fundo dos degraus, um homem, todo vestido de negro, sem gorro e de mãos nuas, olhava para ela sem dizer uma palavra e esse homem era Lourenço...

A jovem nunca lhe vira aquele rosto enraivecido, sulcado pelas lágrimas e pelo sofrimento, nem aquele olhar ardente, que suplicava e exigia tudo ao mesmo tempo. Na sombra do vestíbulo, por trás dele, o traje sombrio de Demétrios deslizou sem ruído nas lajes de mármore e desapareceu.

Num passo lento, como se temesse que um movimento brusco fizesse desaparecer a aparição, ou a assustasse, Lourenço subiu na direcção de Fiora. Ela podia sentir a sua respiração, podia ver, sob o gibão negro e a camisa aberta deixando ver a brancura de uma ligadura, erguer-se o peito magro. Quando ele chegou diante dela, dominando-a com a sua alta estatura, ela não fez um gesto, não disse uma palavra, levantando apenas a cabeça para ele, oferecendo apenas os seus lábios entreabertos sobre os quais, docemente e fechando os olhos como que para melhor saborear um prazer raro há muito esperado, ele pousou os seus sem a tocar. Foi um beijo longo mas leve, delicado, quase tímido, como se ele bebesse uma flor de um cálice...

Depois, Fiora sentiu as mãos de Lourenço nos seus ombros e essas mãos tremiam. Então, ela repeliu-o com doçura, mas sorriu-lhe ternamente ao ver o seu rosto crispar-se de dor. A jovem segurou-lhe numa das mãos, pegou no candelabro e caminhou na direcção da porta do seu quarto.

Vem! disse ela apenas.

Enquanto, com um gesto maquinal, ele fechava a porta, Fiora foi colocar a luz sobre uma arca e, uma após outra, apagou as velas. O quarto ficou apenas iluminado pela luz da vela que mal dourava o interior das cortinas brancas. Imóvel, Lourenço seguia com os olhos cada um dos gestos da jovem. Então, ela deixou cair por terra o manto sem mangas e desatou a fita da sua camisa, que deslizou até aos seus tornozelos. Um instante depois, ela estava nos braços dele e ele levava-a para o leito onde se deixou cair com ela...

Fizeram amor em silêncio, porque não necessitavam de palavras. O vocabulário da paixão não era para ali chamado, sabiam ambos que a sua união tinha raízes num passado de grande admiração mútua, sem dúvida, mas também numa espécie de instinto, que os levara a unir-se. Lourenço fora ter com Fiora como o viajante perdido que descobre, subitamente, uma estrela no céu negro e Fiora acolheu-o porque sentira, ao vê-lo que, entregando-se, era o único meio de apaziguar aquele desespero mesclado de cólera que lhe envenenava a alma. Além disso, vestida com o nome execrável dos Pazzi, sentia um deleite secreto em dar ao Magnífico aquela noite de núpcias que nunca aceitara ter.

Próximos um do outro em tais condições e sem o socorro de um verdadeiro amor, Lourenço e Fiora poderiam ter conhecido o desaire, ou, pelo menos, uma decepção, mas descobriram, maravilhados, que os seus corpos unidos vibravam em uníssono, realizando um acordo perfeito, tão raro entre amantes. Cada um sabia, por instinto, o que podia agradar ao outro e foi em conjunto que atingiram a voluptuosidade suprema, um prazer de uma intensidade tal que, no fim, cada um foi atirado, ofegante, para o seu lado da seda amarrotada dos lençóis. Após o que, simultaneamente, mas nos braços um do outro, caíram no sono de que ambos tinham tanta necessidade e que não tinham conseguido encontrar na sua solidão.

De madrugada, Lourenço levantou-se. Fiora dormia tão bem que ele hesitou em acordá-la, mas antes de mergulhar de novo no inferno que o esperava, ele precisava de encher os olhos e os lábios com uma força nova. Então, tomou-a de novo nos braços e beijou-lhe o rosto até que ela, por fim, abriu as pálpebras lentamente.

Não queria partir como um ladrão murmurou ele contra a sua boca. E depois... permites-me que regresse... logo à noite?

Ela sorriu-lhe, espreguiçando-se com uma deliciosa sensação de bem-estar:

Precisas de autorização?

Preciso... O que tu me deste foi tão belo que mal posso acreditar.

Desta vez, ela riu-se:

Ao pé de ti, frei Tomás era um crente cego. Ora, diz-me lá como é que aparecemos os dois, nus, neste mesmo leito?

Talvez tenha sido um sonho e eu queira continuar a sonhar? Eu preciso de te amar, Fiora, de receber o teu calor e de te dar o meu. Tu és como uma nascente há muito esperada e que um milagre fez brotar do rochedo mais negro e mais árido. Não beber mais dela seria, para mim, um sofrimento cruel. Continuas a desejar-me?

Ela ajoelhou-se no leito para segurar nas suas mãos aquela cabeça rude, aquele rosto tão feio e tão atraente:

Sim, desejo-te! disse ela numa voz baixa e um pouco rouca, que o fez estremecer. Volta. Estarei à tua espera.

A jovem beijou-o longamente e depois, deslizando rapidamente por entre as mãos ávidas que tentavam agarrá-la, meteu-se debaixo dos lençóis e colocou uma almofada entre os braços...

Mas, por agora, preciso que me deixes dormir!

Quando Fiora voltou a acordar, o céu estava cinzento e a chuva, que fizera tréguas durante dois dias, recomeçara a cair copiosamente. O jardim estava afogado num nevoeiro líquido que diluía os carreiros e desfeava as estátuas, mas a jovem concedeu apenas à paisagem enevoada um suspiro de aborrecimento e um encolher de ombros. Depois de tantos sofrimentos, a noite que acabava de viver provocara-lhe o efeito de um banho de juventude. Lourenço era o amante com que todas as mulheres sonhavam e as suas carícias tinham-lhe lavado o corpo de todas as concupiscências e dores que tivera de suportar. E a jovem nem sequer se interrogou acerca dos sentimentos que ele podia inspirar-lhe: sentia-se bem junto dele e, por agora, era tudo o que contava. No entanto, foi com uma espécie de cólera que repeliu o único pensamento que a importunou: apesar de os móveis não serem os mesmos, fora naquele quarto que Philippe fizera dela uma mulher.

A culpa é tua! gritou ela para aquela sombra que voltava inoportunamente para lhe impor a sua recordação. Não devias ter partido para ir brincar aos grandes cavaleiros junto da tua princesa! Foste tu que instalaste entre nós o irreparável. Eu só tenho vinte anos! Tenho direito à vida!

A jovem esquecera por completo que, pouco tempo antes desejara morrer, de tal modo os encantos do amor podem aprisionar um ser jovem. Com todas as suas forças, queria repelir as contrariedades e a austeridade. Vivera cativa durante meses e eis que a sua prisão acabava de abrir-se para qualquer coisa que se parecia com a felicidade, mesmo que não passasse de uma aparência... E foi com um olhar pleno de desafio que, depois da refeição servida no seu quarto por Samia, foi afrontar o olhar de Demétrios quando se lhe juntou no antigo estúdio do seu pai.