Mas ele conhecia-a demasiado bem para não penetrar nos seus pensamentos e aqueles grandes olhos cinzentos carregados de nuvens de tempestade arrancaram-lhe um sorriso. Fiora, pensou ele, procurava um pretexto para se encolerizar, esperando desembaraçar-se, assim, do constrangimento que sentia. E não se enganou:

Por que esse sorriso? perguntou ela nervosamente e por que me olhas assim? Mudei alguma coisa? Sim, entreguei-me a Lourenço! Até me ofereci a ele! E, logo à noite, ele vai regressar e eu vou-me entregar outra vez a ele!

Tirando as lunetas que usava cada vez mais frequentemente, Demétrios afastou-se da estante sobre a qual abrira um manuscrito hebraico, aproximou-se da jovem e pousou as mãos nos ombros que sentiu ficarem hirtos.

Longe de mim fazer-te qualquer censura, Fiora! O que se passou a noite passada entre Lourenço e tu estava escrito há muito. Ele falou-me muitas vezes de ti, depois do meu regresso e compreendi, sem dificuldade, que tu eras a sua maior dor. Era normal que ele viesse ter contigo do fundo da sua confusão.

Nesse caso, achas que ele me ama?

Tu és como todas as mulheres: simplificas demasiadamente os sentimentos. Lourenço estava como um jardineiro que viu fugir um ladrão com a mais bela flor do seu jardim sem, sequer, lhe dar tempo de respirar. Ontem, a sua flor regressou, mas mais bela do que nunca e exalando um perfume demasiado capitoso para que ele renunciasse a embriagar-se. Quanto a ti...

Quanto a mim?

Cessa de te rebelares assim, Fiora! Tu não cometeste nenhum crime. O amor, simplesmente, devolveu-te o gosto pela vida que tinhas perdido.

O amor? Eu nem sequer sei se amo Lourenço. No entanto, seria tão simples!

Sobretudo, mais cómodo, porque tu foste moldada segundo a moral cristã, a despeito da tua educação platónica e isso deve-lo à nossa querida Léonarde.

Não me fales dela, senão fico doente de vergonha!

Tens razão, fiz mal em falar-te dela. Quanto à vergonha, é uma palavra estúpida, mesmo que não ames verdadeiramente Lourenço. O que tu amas nele, é, antes de mais, o amor que ele te dá e eu sei que ele é uma espécie de... virtuoso. Mas é também a lenda e, bem lá no fundo, continua a existir em ti a florentina, a quem o Magnífico enche o horizonte. Sem o saberes, estavas mais ou menos apaixonada por ele...

Não. Eu amava Giuliano.

Pensavas amar! A prova é que o afastaste muito depressa do teu espírito. Mas esqueces que naquele famoso baile onde nos conhecemos pela primeira vez, vi-te dançar com Lourenço e eu nunca vi um rosto tão iluminado de alegria como o teu nessa ocasião.

É verdade, estava muito feliz... e muito orgulhosa, sobretudo!

Assim como estás orgulhosa, hoje, por o teres acorrentado aos teus pés. Ele veio ter contigo como um pobre que pede caridade, de mãos vazias, nuas e suplicantes, ele, que é todo-poderoso e eu compreendi imediatamente que tu ias enchê-las de riquezas. Ao passo que o terias repelido se ele tivesse vindo como príncipe e como senhor. Acertei?

Desaparecida a cólera, Fiora desatou a rir.

Tu tens quase sempre razão, Demétrios! E que faço, agora? Tenho de partir outra vez...

Ainda não. Aliás, ainda não tens vontade. Deixa que te amem! É o melhor dos remédios, não apenas para o corpo, mas também para o coração, que acaba de sofrer muito. Entretanto...

Ele ficou silencioso por um momento e Fiora sentiu uma inquietação no espírito.

Entretanto?

Conversaram muito, os dois? Ele deve ter-te feito algumas perguntas...

A jovem ficou vermelha como um tomate e, virando-se, foi examinar o livro pousado na estante.

Nós... nem sequer falámos!

Felicitações! disse Demétrios, que não conseguiu impedir-se de rir perante o ar confuso daquele rosto jovem. E, se queres saber, sinto-me feliz por isso, mas haveis de conversar. E agora ouve-me bem e, sobretudo, não lhe digas que te casaram com um Pazzi!

Cario fez tudo para me ajudar.

Sem dúvida, mas Lourenço está demasiadamente ferido para suportar a ideia de que tu uses esse nome! Por maior que seja o seu desejo, afastar-se-ia de ti com horror. E as consequências poderiam ser dramáticas. Compreendeste?

Não tenhas medo! Não lhe direi nada.

Com um dedo cauteloso, ela virou algumas das páginas estaladiças do manuscrito que não era capaz de ler, contentando-se em admirar a beleza um pouco misteriosa dos caracteres.

O destino é uma coisa estranha suspirou ela. O meu parece comprazer-se em fazer-me contrair matrimónios que devo esconder a Lourenço. Lembras-te?

Tens razão, mas a situação é diferente. Farias melhor se esquecesses este último. Não conta, porque...

Porque?

Nada. Não penses mais nele. Pensa, apenas, no homem que vem logo à noite procurar, junto de ti, o refúgio de que tanto necessita.

Mas Lourenço não apareceu. Enviou um bilhete por Esteban, que fora dar uma volta pela cidade. O funeral de Giuliano estava marcado para a manhã seguinte e Lourenço velaria o jovem morto durante aquela última noite.

As notícias que o castelhano trouxe revelaram-se dramáticas. A perseguição aos Pazzi, seus familiares e aliados continuava. Tinham apanhado dois na cidade, dos quais um, disfarçado de mulher, estava escondido na igreja de Santa Croce, três outros tinham sido presos nos campos. Quanto ao velho Jacopo, que os cavaleiros da Senhoria tinham apanhado na estrada de Imola, devia estar a caminho de Florença numa liteira fechada. Iria para o balcão de ferro no momento em que Giuliano descesse à terra.

Outros tinham sido precipitados lá do alto, enforcados ou abandonados ao povo e, diante do Velho Palácio, o número de mortos mais ou menos decepados ascendia a setenta. Mas eram só homens, já que Lourenço proibira formalmente que molestassem as mulheres que, de facto, não tinham participado directamente no assassínio.

E Hieronyma? perguntou Fiora com azedume. Ela não fez nada?

Foi a única que o Magnífico ordenou que apanhassem disse Demétrios.

Como é que ele soube que ela estava cá?

Fui eu que lhe disse ontem, quando fui à via Larga depois de te ter trazido para aqui. Podes estar certa de que andam à procura dela.

Nada de mais verdadeiro continuou Esteban. Interroguei Savaglio, o chefe dos guardas, que orienta a perseguição e ele disse que, se encontrar esse demónio fêmea, o abate mesmo ali, mas já vasculhou as casas todas dos Pazzi, depois o palácio deles perto de Santa Croce e a villa de Montughi. Encontrou muitas mulheres em pranto e com as cabeças cobertas de cinza, mas nenhuma delas era Hieronyma.

Quando ela viu o golpe mal parado, deve ter partido logo para Roma suspirou Demétrios.

É preciso que o consiga. Todas as estradas e caminhos estão guardados e ninguém pode sair da cidade.

Mas ela não estava na cidade. Estava, justamente, em Montughi e, se não a encontraram, é porque conseguiu fugir...

No dia seguinte, à noite, depois de ter confiado os despojos do seu irmão mais novo ao túmulo familiar na Velha Sacristia de São Lourenço, onde já repousavam o seu pai, Piero, o Gotoso, e o seu avô, Cosimo, o Ancião, Lourenço confirmou essa ideia pessimista. Alguns Pazzi tinham conseguido fugir por entre os dedos dos soldados. Evidentemente, António e Stefano, os dois clérigos que o tinham atacado, estavam mortos depois de terem, torturados, entregado todos os seus cúmplices; fora assim que tinham apanhado Montesecco que, entretanto, recuara no último momento perante o horror do sacrilégio. Tivera a cabeça decepada. Evidentemente, Francesco Pazzi recebera o castigo que merecia, mas Bandini, o homem que se encarniçara sobre o corpo de Giuliano, conseguira fugir. Perseguido na estrada de Veneza, conseguira, miraculosamente, desaparecer na natureza.

Mas eu hei-de encontrá-lo afirmou Lourenço. Vá para onde for, mesmo que se refugie entre os Turcos, hei-de pôr-lhe a mão em cima.

Isso perfaz muitos mortos disse Fiora. Tens a certeza de que foram todos culpados?

É evidente que não, mas não pude conter a fúria popular. Mal consegui impedir que tomassem de assalto o meu próprio palácio para extirparem o cardeal Riario...

Que vais fazer dele? Lourenço encolheu os ombros:

Nada! Quando a cidade acalmar, mando-o para Roma com uma boa escolta... ou para Perúsia, porque foi para lá que ele foi nomeado como núncio. Se o visses: morre de medo e eu estou certo de que, se ele tivesse suspeitado do que se ia passar em Santa Maria del Fiore, nunca teria lá posto os pés. Mas, peço-te, minha doce, minha bela, minha preciosa, paremos de falar desse horror! Junto de ti só quero falar de desejo e de amor...

Nessa noite, os dois amaram-se longamente, ardentemente, como se não conseguissem saciar-se um do outro. Porém, Lourenço acabou por encontrar o sono, vencido pela fadiga esmagadora provocada pela tragédia do Domingo de Páscoa. Fiora, essa, não conseguia dormir. Sentada no leito, com os cotovelos nos joelhos, contemplou durante muito tempo o grande corpo moreno, ao mesmo tempo magro e musculado, que jazia a seu lado, parecido com aqueles corpos hirtos que vira em certos túmulos. O esgotamento fulminara-o e ele repousava, os braços e as pernas afastados na cama em desordem, um dos punhos enrolados numa das longas mechas negras da jovem.

Ela tentou puxar os cabelos, mas Lourenço segurava-os com firmeza e ela renunciou para não o acordar. Então, acabou por se deitar encostada a ele depois de ter, por um instante, pousado

Com efeito, O Sultão enviá-lo-ia acorrentado a Lourenço como prova de amizade.


os seus lábios no pescoço ferido, cuja ligadura se tinha deslocado.

Uma vez mais, perguntou a si própria se o amava, sem que o seu coração lhe fornecesse uma resposta. Desejava-o e, nos seus braços, sentia-se feliz, mas quando o silêncio caía entre eles, Fiora não se conseguira impedir de ouvir, no fundo de si mesma, uma voz dolorosa, que era a voz das suas mágoas. Por mais maravilhosas que fossem as horas passadas com Lourenço, não conseguiam abafar a recordação do seu amor por Philippe... por Philippe perdido para sempre a despeito dos vaticínios obscuros de Demétrios. E, sem mesmo se dar conta, Fiora deixou cair abundantes lágrimas em cima do ombro do seu amante adormecido.

Quando ele acordou, ela ainda não tinha conseguido adormecer. Várias ideias giravam na sua cabeça. E enquanto Lourenço se vestia na frescura de uma madrugada chuvosa, ela deu-lhe parte do seu desejo de ir rezar no túmulo do seu pai, na igreja corporativa Ouro de São Miguel.

Neste momento é impossível, meu amor. Não vejo que possas ir à cidade enquanto o povo não acalmar. O espectáculo é abominável. O odor também e eu não gostaria de estar na pele de Sandro Botticelli...

Porquê?

A Senhoria encomendou-lhe uma pintura nas suas paredes, uma imagem dos corpos supliciados que penduraram do balcão. O infeliz passa horas, mal abrigado por um toldo, a fazer esboços.

Pobre Sandro! Ele, que só ama a beleza... Bem, contentar-me-ei em passear em redor da casa. Mas, já agora, podes dizer-me o que aconteceu à nossa propriedade?

Aquela que possuíeis perto de Montughi? Creio que continua a ser tua, ninguém se quer lá instalar e a propriedade está ao abandono.

Por que razão?

A morte de Marino Betti, o assassino do teu pai, fez fugir toda a gente. Os nossos camponeses são supersticiosos, como sabes, e têm um medo terrível dos fantasmas. Mas vai ser preciso tentar fazer qualquer coisa. Talvez, se queimarmos a árvore onde ele foi enforcado e se arrasarmos a casa onde ele morava?

Falaremos disso mais tarde. Não há pressa, de facto...

Temos muito tempo pela frente disse ele ternamente, inclinando-se para a boca da jovem.

Quando ele ia a sair, ela chamou-o:

É melhor não vires esta noite disse ela.

Porquê? perguntou ele, subitamente com um olhar sombrio. Já estás cansada de mim?

Como podes dizer uma tolice dessas? Não, Lourenço mio, não estou cansada de ti, mas, na vida de uma mulher, há noites que ela deve passar sozinha. Compreendes?

Ele riu-se e tomou-a nos braços para lhe cobrir o rosto e o pescoço de beijos.

Seja, criatura impura! Pelo menos, poderás dormir. E a minha mãe também. Por causa do que se passou, ela preocupa-se com as minhas saídas nocturnas. Mas não penses que me manténs à distância durante muito tempo!

Uma hora após a sua partida, Fiora foi ter com Demétrios para lhe dar parte da ideia que lhe viera à mente. Ele escutou-a sem dizer uma palavra e quando ela acabou, perguntou: