Ainda é muito cedo disse Léonarde, que acabava de entrar e a surpreendera nessa posição. Se fizemos bem as contas, estais grávida há dois meses, meu cordeirinho. Espero que estejais contente?

Era evidente que estava e era uma sensação deliciosa após dois meses de retiro para dentro de si própria. Saber que começava a germinar uma vida dentro de si tirava-lhe o sentimento acabrunhante de não ter, neste mundo, qualquer utilidade, nenhum preço real, já que o homem que, numa noite de Inverno, lhe jurara protegê-la, amá-la, defendê-la, mantê-la no seu leito e no seu quarto até que a morte os separasse, preferira a guerra e o serviço de uma princesa que se dizia ia tornar-se alemã. Doravante, Fiora tinha uma razão para viver e um objectivo: dar à luz o mais belo bebé do mundo e depois, mesmo que o seu pai nunca mais regressasse, educá-lo, fazer dele um homem forte e sábio, para quem as armas e o furor dos combates não representariam o bem supremo; um homem que saberia parar para cheirar uma flor, para admirar a beleza de uma paisagem ou de uma obra de arte, ou, simplesmente, para falar com um amigo, a um canto de uma rua, de coisas úteis para o Estado, ou das últimas descobertas do espírito humano. Um homem, enfim, que se parecesse mais com Francesco Beltrami do que com o seu próprio pai.

Era, sem dúvida, ilógico e até aberrante, mas a ideia de que o seu filho pudesse vir a ser um grande fanfarrão unicamente ligado à força e à brutalidade deixava-a horrorizada. Vira demasiada guerra durante demasiado tempo e demasiado perto de si para lhe achar qualquer encanto.

E se for uma rapariga? - perguntou Léonarde, que continuava a ser a confidente dos pensamentos da jovem.

Ainda não tinha pensado nisso. Para mim, o bebé de Philippe só pode ser um rapaz. Aliás, é preciso que seja um rapaz! Não ides, certamente, concluir que não seria capaz de amar uma rapariga? Pelo contrário, porque ela seria mais minha. Mas é preciso, uma vez ou outra, dar um jovem macho aos senhores. E estou persuadida de que devo dar continuidade aos Selongey.

Não acrescentou, mas isso era a sua esperança secreta, que o encanto de um filho talvez conseguisse fazer com que Philippe compreendesse a sã compreensão da vida familiar. Preparou-se, desde então, para o grande acontecimento, escutando sensatamente os conselhos que Léonarde e Péronnelle lhe prodigalizavam. Esta última começou a torturar o cérebro em busca de iguarias que não produzissem qualquer repugnância à futura mãe, tentando, mesmo, o seu apetite. As suculentas e pesadas salsichas, de que Tours se orgulhava com razão, foram banidas em prol de uma alimentação mais ligeira. Fiora passou a comer lacticínios, queijos frescos, bolos leves, galinhas que se desfaziam na boca e o melhor peixe que Étienne ia pescar no Loire. Também teve, enquanto duraram os enjoos, chás de cidreira e de menta e quando a Primavera cobriu as encostas de primaveras e fez explodir nas árvores frutíferas do pomar enormes ramos brancos e cor-de-rosa, passados os primeiros tempos difíceis, sentiu-se como não se sentia há muito tempo e tomou parte nos preparativos do nascimento: a confecção do enxoval.

A vida, na Casa das Pervincas, era muito calma, retirada e até solitária. Fiora regozijava-se porque, por um momento, receara que a vizinhança imediata do castelo real fosse uma fonte de agitação, senão de invasão. O que seria o caso, sem dúvida, se Luís XI estivesse em Plessis, mas, praticamente no dia seguinte à chegada das viajantes, ele abandonara a sua casa predilecta com a maior parte da sua corte para se juntar aos seus exércitos do Norte.

O Rei não tencionava, com efeito, confiar a ninguém a recolha da herança do Temerário e, de facto, dera ao seu inimigo poucas hipóteses de escapar à armadilha de Nancy: no preciso momento em que o gelo do lago Saint-Jean se fechava sobre o corpo agonizante do último dos grandes duques do Ocidente, já os exércitos do Rei de França tomavam posição nas fronteiras da Lorena, perto de Toul, perto de Metz, assim como no Somme e há muito tempo que só esperavam um sinal para mergulhar na Borgonha, cujas fronteiras já tinham ultrapassado. De seguida, a guerra desencadeava-se em Artois e na Picardia, ao mesmo tempo que as poderosas cidades flamengas, mais aliviadas do que desgostosas com uma morte que as libertava de uma tutela cujo peso recusavam, davam a saber a Maria de Borgonha que o tempo dos seus privilégios tinha terminado e que era, no seu palácio de Gand, mais prisioneira do que soberana. Para lho provarem, fizeram rolar as cabeças do último chanceler da Borgonha, Hugonnet e do senhor de Humbercourt, que era um dos mais sólidos conselheiros de Maria.

Não sabendo para que lado se virar, a infortunada herdeira escrevera, no fim do mês de Março daquele ano de 1477, ao filho do Imperador Frederico, considerado por ela como seu noivo, uma carta desesperada, chamando-o em seu socorro. Mais ou menos no momento em que Philippe de Selongey se introduzia em Dijon, a capital do ducado, da qual esperava, levando-a à rebelião, fazer o centro da resistência.

Na sua propriedade de Tours, protegida pela floresta e pelo rio, Fiora ignorava todos esses acontecimentos. Teve uma ideia quando, em Abril, recebeu a visita inopinada do senhor de Argenton, Philippe de Commynes, que na qualidade de primeiro conselheiro do Rei ela pensava estar a seu lado na guerra.

Philippe de Commynes mostrara ser seu amigo em condições difíceis e ela acolheu-o com o prazer devido a uma pessoa de quem se gosta, oferecendo-lhe repouso a um canto da chaminé onde ardia uma pilha de toros odoríferos e uma taça do vinho que todas as casas acolhedoras ofereciam a um viajante. Enquanto isso, Léonarde prevenia, sob as suas ordens, Péronnelle, para que esta regressasse à boa cozinha. Commynes era comilão, Fiora sabia-o, e possuía um bom apetite flamengo, que era preciso contentar. Porém, todas essas atenções arrancaram apenas ao conselheiro real um grande suspiro:

Ides arrepender-vos por vos preocupardes dessa maneira comigo. Não imaginais, sem dúvida, que vos trago qualquer mensagem do vosso sire?

De facto confessou Fiora. Mas, se não é o caso, não sois menos bem-vindo. Será que depois de Senlis já não somos amigos?

Espero que sim e foi por isso que, a caminho do meu exílio, não me pude impedir de passar um momento junto de vós. Uma maneira como outra qualquer de me consolar.

A caminho do vosso exílio? Estais zangado com o Rei?

Zangado é de mais. Digamos que indisposto e que ele me quer longe por um certo tempo. Mandou-me a Poitiers.

A Poitiers? E que ides vós fazer a Poitiers?

Não sei bem. Desembrulhar não sei que história provincial com os almotacés da cidade, uma miséria para um homem como eu. É verdade que o indispus com as minhas censuras.

Censurastes o Rei, vós?

Eu. E o pior é que não me arrependo e estou pronto a recomeçar.

Mas, porquê?

Porque pergunto a mim próprio se ele não enlouqueceu! Por favor, Madonna, dai-me mais um pouco de vinho de Bourgueil! Preciso muito, porque tenho coisas amargas a dizer. Não reconheço o nosso sire. Tão sensato, tão prudente, tão preocupado

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


com a vida dos outros... e eis que se comporta exactamente como o defunto duque Carlos.

Quereis dizer que ele massacra os que lhe resistem?

Mais ou menos isso. No entanto, ia tudo tão bem. O Rei começou por intimar à ordem René da Lorena, para que se mantivesse tranquilo e trouxesse as suas tropas até ele. Depois, comprou Sigismond de Áustria para que ficasse no seu Tirol e fez o mesmo com os Suíços, para que se contentem com o que ganharam. E depois, logo a seguir à vossa chegada, partimos para o Somme. Então...!

E Commynes, com a prolixidade e o luxo de pormenores de um homem para quem a política é uma segunda natureza, contou à sua anfitriã como Luís XI penetrara na Picardia e em Artois com o falacioso pretexto de proteger os bens de Maria de Borgonha que, aliás, era sua afilhada como um bom padrinho em socorro da sua órfã. Numerosas cidades, como Abbeville, Doullens, Montdidier, Roye, Corbie, Bapaume, etc., tinham-se deixado tomar sem grandes dificuldades e sem grandes queixas; mas outras, mais bem guardadas, talvez, pelos seus governadores borgonheses, tinham recusado render-se e tinham pedido ajuda a Maria. Souberam, então, quanto pesa a cólera do Rei de França: assaltos, pilhagens, execução de notáveis, expulsão dos seus habitantes e destruição, no todo ou em parte, das cidades culpadas. Já não era a Aranha Universal tecendo pacientemente a sua teia do fundo do seu gabinete, era Átila conduzindo as suas tropas à matança. Arras, meio destruída, foi esvaziada dos seus habitantes, substituídos por gente pobre, que, também ela, tinha perdido tudo.

Foi aí concluiu Commynes que interveio a divergência entre o Rei e eu. Censurei-o por esses excessos tão pouco conformes com a sua natureza e ele censurou-me por eu ser demasiado flamengo e sentir simpatia pelos seus inimigos. É por isso que me vedes na estrada de Poitiers com, como única consolação, o pensamento de que vou poder saudar Hélène, a minha bela mulher, na sua cidadela de Thouars.

É verdade que não a vedes muitas vezes. É normal uma mulher viver fechada nas suas terras com a família enquanto o marido vive na corte do soberano? murmurou Fiora, sonhadora.

Parece que não a iríeis ver se o pudésseis evitar? Acho-vos gente bem estranha, vós todos, Franceses e Borgonheses! Entre nós, marido e mulher vivem junto um do outro até que a morte os separe. E não me digais que isso é uma vida burguesa: Monsenhor Lourenço e Dona Clarissa, sua mulher, se não estão sempre sob o mesmo tecto, moram, pelo menos, na mesma cidade. Aqui, o Rei vive em Plessis e a Rainha em Amboise; a vossa mulher vive em Thouars e vós junto do Rei e...

À medida que falava, Fiora ia ficando excitada. O marfim pálido do seu rosto enrubesceu um pouco, ao mesmo tempo que uma lágrima lhe cintilava nos seus grandes olhos cinzentos. E a sua voz quente deixava perceber uma ligeira falha. Commynes contemplou-a por um instante sem dizer nada, deleitando-se com o espectáculo da sua beleza que parecia caminhar na direcção da perfeição, como uma rosa prestes a desabrochar. A jovem estava sentada numa cadeira alta de carvalho esculpido, delicadamente estofada com almofadas de brocado de um verde-prateado que punham reflexos de águas profundas no vestido de tecido suave e ”esbranquiçado”, bordado com delicadas folhas de salgueiro e pálidas violetas que formavam grinaldas em redor das mangas, no profundo decote que uma gargantilha de musselina tornava mais modesto e na barra da saia. Os seus belos cabelos, simplesmente entrançados com uma fita, formavam uma espessa trança que deslizava ao longo do seu pescoço gracioso, dando-lhe o ar de uma rapariguinha.

Com aqueles adornos simples, estava mais deslumbrante do que nunca. No entanto, o olho vivo do senhor de Argenton parecia reparar que, sob as largas pregas aveludadas presas sob os seios por um grande cinto de prata, o corpo parecia estar ligeiramente arredondado. Viu-a, então, com outros olhos: já não era unicamente um ser de uma sedução excepcional e de uma coragem pouco comum, era também uma mulher fragilizada por uma futura maternidade, que não sabia grande coisa, sem dúvida, acerca do homem que amava; uma mulher que tinha, sobretudo, uma grande dificuldade para se adaptar àquela forma de vida separada, que a vida da corte e as exigências da guerra impunham. Em Itália, a guerra era assunto de mercenários: o príncipe que fosse capaz de escolher os melhores e mais numerosos tinha grandes hipóteses de a ganhar. As gentes de Florença, assim como as outras, pagavam para ficar em suas casas, desobrigadas de se matarem umas às outras de tempos a tempos, mas quando um perigo qualquer se aproximava das muralhas, era toda a população que se batia, as mulheres ao lado dos homens. Fiora não compreendia por que razão o serviço de um suserano qualquer havia de a condenar à solidão.

Docemente, ele pegou numa das belas mãos que repousavam nos joelhos da jovem, colocou-a entre as suas e terminou a frase que deixara em suspenso.

... e vós próprios, ainda mais separados, já que o vosso marido serve a duquesa Marie enquanto vós estais ligada a França.

Pelas minhas amizades e pelos meus interesses, já que a pouca fortuna que me resta se encontra neste país e, enfim, porque não tenho qualquer razão que me leve a combater o Rei Luís, que foi bom para mim.

Mas esperais uma criança e o vosso dilema é, ainda, mais doloroso. Que posso fazer para vos ajudar, minha amiga?

Ela corou e as lágrimas que não conseguiu reter deslizaram-lhe pelas faces.