Vós, que sabeis sempre tudo, podeis dizer-me onde ele está? Deixei-o há quatro meses e, desde então, não tenho quaisquer notícias.
Gostaria de vos fazer a vontade, mas é difícil, mesmo para mim. Maria de Borgonha e a duquesa viúva são mantidas sob grande vigilância pelos de Gand no seu palácio de Coudenbergh, mais reféns do que soberanas e os nossos espiões não têm meio de saber o que se passa. No entanto, posso dizer-vos que se monsenhor de Selongey estava até há pouco junto delas, parece que desapareceu.
Desapareceu?
Não entendais isso no mau sentido, Madonna. Penso que ele já não está em Gand e que Madame Maria o encarregou de uma missão, talvez no Condado de França, mais provavelmente na Borgonha, onde, parece, a notícia da morte do Temerário não provocou grandes lágrimas. Ele deve ter ido reaquecer esse entusiasmo enfraquecido.
Por outras palavras: está em perigo! Meu Deus!
Acalmai-vos, peço-vos. O que eu disse não passa de suposição. A duquesa pode, também, tê-lo enviado junto do noivo para lhe pedir que se apresse. Repito-vos: não sabemos nada. O que posso prometer-vos é que vos darei notícias assim que as receber.
Credes que tereis algumas em Poitiers?
Lá estais vós a malhar em ferro frio! disse Commynes rindo. Mas podeis estar certa que tenho, aqui e ali, alguns informadores e que, de qualquer maneira, não ficarei muito tempo em Poitiers... Vou-me aborrecer sem o nosso sire... mas ele ainda se vai aborrecer mais!
Léonarde, que entrava para anunciar a refeição, encontrou os dois a rir, o que a tranquilizou. Commynes, apesar de se ter tornado francês, guardava algo de borgonhês que a inquietava vagamente, mas no decurso da refeição esqueceu-o. O senhor de Argenton continuava a ser um conviva amável, alegre e eloquente. Embalado por um salmão do Loire com limão seguido de umas salsichas de galo e de um suculento fricassé de galinha-do-mato e perdiz com cogumelos, tudo regado com belos vinhos do Loire que Étienne Lê Puellier trazia piedosamente da adega da casa, foi brilhante e estrondoso de bom humor. Fiora ria e Léonarde, feliz por isso, concedia todas as atenções ao visitante de passagem.
No dia seguinte, Commynes retomou o caminho do seu exílio, deixando para trás uma Fiora cheia de esperança. Com efeito, pouco desejosa de servir o império alemão, a alta nobreza borgonhesa começava a olhar com olhos meigos para as mãos carregadas de presentes que o Rei Luís lhe estendia. As reuniões sucediam-se, ainda por cima porque o Rei pagara alguns dos resgates que os nobres prisioneiros do último combate deviam pagar ao duque da Lorena. E, no momento de a deixar, Commynes murmurara:
Até o grande bastardo Antoine, o irmão preferido e o melhor capitão do defunto duque está a pensar em se virar para nós. O vosso marido não poderá continuar a brincar durante muito tempo aos irredutíveis. Um dia fará como os outros: escolherá a França.
Não podia ter-lhe dito nada mais reconfortante. Se o grande bastardo achava que a Borgonha se devia virar para o seio francês, ainda por cima porque as suas armas tinham a flor-de-lis, arrastaria consigo aqueles que tinham estima e amizade por ele. Philippe era desses. Talvez continuasse amuado durante mais algum tempo. O importante era que não cometesse nenhuma acção irreparável e Fiora recordava-se demasiado bem de ter conseguido, à justa, evitar-lhe o cadafalso por ter tentado assassinar o Rei Luís. Evidentemente, se ele escolhera seguir a duquesa Maria para a Alemanha, era possível que não regressasse tão cedo.
Fiora recusou essa ideia com todas as suas forças. Tinha de manter o espírito livre e cheio de esperança, para”que o seu filho herdasse dela essa boa disposição. Depois do nascimento, talvez se pudessem pôr em busca de Philippe. O Rei estaria, provavelmente, de regresso das suas campanhas e a sua ajuda seria ”preciosa. A criança faria o resto.
Pouco tempo depois da visita de Commynes, um outro viajante bateu à porta do solar. Era, vindo de Paris, o jovem Florent, o aprendiz de banqueiro de Agnolo Nardi. Chegou numa noite de chuva, completamente ensopado a despeito da grande capa com capuz que o envolvia e em cima de um cavalo também ele ensopado, mas os seus olhos brilhavam como velas acesas e a alegria emanava de todos os traços do seu rosto.
Florent trazia, com uma longa carta de Agnolo cheia de pormenores financeiros e afectuosos, todo o calor amável dos habitantes da rue des Lombards e uma bolsa bem pesada, que continha os interesses de Fiora nos negócios da antiga casa Beltrami. Fiora espantou-se por terem confiado uma soma daquelas a um jovem lançado à sorte nos grandes caminhos, mas este limitou-se a rir dos seus receios: graças a Deus, a polícia do Rei Luís era eficaz e as estradas de França, percorridas pelos cavaleiros da posta real, eram extremamente seguras.
Nesse caso, por que razão não foi isto tudo entregue na posta? perguntou maliciosamente Fiora, que há muito estava ao corrente dos sentimentos que por ela nutria o jovem. Sinto-me confusa por vos terdes dado a tanto trabalho, Florent. Esta viagem toda, com este tempo...
Ainda por cima disse Léonarde, fazendo-se eco da sua patroa porque a Primavera ainda vem longe. As gentes daqui prevêem um longo período de chuva. O regresso não será nada agradável.
Ocupado a queimar-se heroicamente com a malga de vinho de ervas a ferver com que Péronnelle o gratificara enquanto a sua capa fumegava diante da lareira da cozinha, Florent fez sair do recipiente duas faces vermelhas e brilhantes como uma maçã camoesa e um olhar de épagneul apaixonado.
Com vossa permissão, Dona Fiora... eu não vou regressar. Vim para ficar e mestre Nardi sabe-o!
Quereis ficar aqui? Mas, Florent, para fazer o quê? Eu não preciso de um secretário!
Para ser vosso jardineiro. Sabeis muito bem que não tenho o gosto da escrita e que, em casa de mestre Nardi me ocupava muito mais com as flores e os legumes do que com as contas e as letras-de-câmbio.
Mas, e o vosso pai? Ele queria que vós vos tornásseis banqueiro. Deve estar furioso.
Esteve disse Florent alegremente enquanto sacudia a trunfa cor de pintainho que, ao secar, se parecia com um telhado de palha mas a minha mãe tomou a minha defesa. Convém-lhe que eu queira tratar do jardim de uma grande dama. Ainda por cima porque o meu irmão mais novo, que só gosta da finança, já se precipitou para tomar o meu lugar. Portanto, estou livre para vos servir...
Vergonha não vos falta, meu rapaz interveio Léonarde, que fazia grandes esforços para parecer severa. Não vos passou pela cabeça que não precisamos de vós?
Os olhos de épagneul encheram-se de lágrimas.
1 Raça canina
Num solar é sempre preciso um jardineiro e o vosso parece-me belo. Oh, suplico-vos, dona Fiora, não me mandeis embora! Deixai-me ficar aqui junto de vós. Farei o que quiserdes... o maior dos trabalhos, o mais duro. Não ocuparei grande espaço: um pouco de palha na cavalariça e um pouco de sopa. Não vos custarei nada.
Nem pensar disse Fiora. O que conta é que não tenho aqui futuro para vós.
Um futuro onde não estejais presente não tem qualquer interesse para mim. De qualquer maneira acrescentou ele, teimoso, não me afastarei. Mesmo que não me queirais, ficarei na região. Hei-de arranjar qualquer coisa. Sou jovem e forte.
Enquanto Fiora, emocionada, interrogava Léonarde com o olhar, Étienne, que, sentado na chaminé, secava as polainas e os borzeguins enquanto mastigava um pedaço de chouriço seco, tossiu como fazia sempre nas raras ocasiões em que tomava a palavra e declarou:
O trabalho, aqui, não falta. Fazia-me jeito uma ajuda... sobretudo no jardim, que é grande!
Dito isto, voltou-se para o seu chouriço e para o seu silêncio, deixando que as mulheres resolvessem o problema. Para Péronnelle, aliás, o assunto estava encerrado. Se o seu senhor e dono era a favor do rapaz, ela adoptava-o sem mais aquelas.
Podíamos instalá-lo no sótão? disse ela. Dava jeito um homem em casa, já que Étienne se instalou na casa dos trabalhadores com os cães para melhor vigiar os vagabundos.
Florent olhou para ela como se para a própria mãe. A boa mulher, então, tratou de o alimentar, colocando na longa mesa da cozinha um pedaço de pão fresco, um presunto trinchado, uma malga de sopa de couves com belos pedaços de toucinho, um grande tacho de carne de porco frita, queijo de cabra, compota de morango, uma pequena porção de manteiga e um jarro de vinho fresco. Após o que se virou para Fiora com um olhar de interrogação:
Então, que fazemos, minha senhora? Adoptamo-lo ou atiramo-lo para as trevas exteriores onde é tudo ”choro e ranger de dentes”?
Por minha fé, Deus me livre de vos contrariar se o pondes debaixo da vossa asa disse Fiora, rindo. Sede bem-vindo, portanto, Florent. Espero que sejais feliz aqui e que nunca vos venhais a arrepender de terdes deixado mestre Nardi.
Não receeis! disse ele, radiante. Muito obrigado, dona Fiora. Não vos arrependereis de me terdes tomado ao vosso serviço.
Ao meu serviço é dizer muito. Digamos que figurais, doravante, entre aqueles que dão vida a esta casa, para que ela seja um lar doce e caloroso, uma concha macia e bem protegida para a criança que vai nascer.
Estais à espera?...
Com a colher suspensa sobre a malga, Florent olhou para a cintura da jovem. Ficou muito corado e de boca aberta, sem saber o que dizer.
É verdade! disse Fiora, sorrindo. Vou ser mãe em Setembro. Isso altera as vossas intenções? Não sei quando regressa o meu marido, o conde de Selongey... nem se o voltarei a ver um dia, porque tenho medo que esteja em perigo, mas sou sua mulher, apenas sua mulher e nenhum homem, nunca, poderá tomar no meu coração o lugar que lhe pertence acrescentou ela gravemente. Aqui, todos o sabem e quero que também o saibais. Continuais a querer ficar connosco?
Deixando cair a colher, Florent levantou-se e plantou o seu olhar azul no da jovem:
Apesar de me ter dedicado a vós, dona Fiora, nunca ousei esperar outra coisa que não um sorriso ou uma palavra de amizade. Desejava velar por vós, mas podeis estar certa que velarei pela criança com o mesmo cuidado e devoção que teria para com a sua mãe.
Vendo, sem dúvida, que havia ali demasiada emoção, Léonarde colocou ambas as mãos nos ombros do rapaz para o obrigar a sentar-se de novo.
Bem dito! disse ela. E agora comei a vossa sopa, meu amigo. Mereceste-la e a sopa de couves fria não presta para nada. A gordura condensa!
E se comêssemos com ele? propôs Fiora. Tenho uma certa fome e ele deve ter tantas coisas para nos contar!
Um instante mais tarde, todos os que estavam na cozinha estavam instalados em redor de Florent, comendo e bebendo com apetite, ao mesmo tempo que o recém-chegado dava, entre duas colheradas, notícias de Paris em geral e de Nardi em particular. Havia, também, muitas perguntas a fazer, porque se passara mais de um ano desde que, tendo abandonado Nancy na companhia de Douglas Mortimer, deixara Fiora e Léonarde como reféns do duque de Borgonha. Fiora deixou que Léonarde lhe respondesse, sabendo que esta, com a sua prudência e discrição habituais, diria apenas o que deveria ser dito.
Se bem compreendi disse Florent quando esta terminou estivestes em guerra este ano todo que passou?
É verdade! Se me tivessem dito, quando servia em Florença na casa de ser Francesco, que teria, um dia, recordações militares, ter-me-ia rido! No entanto, como vedes, saímos dela vivas!
Separaram-se depois daquela conclusão optimista. Florent caía de sono depois da sua longa corrida e foi, com gratidão, para o cubículo que Péronnelle lhe preparara perto dos seus próprios aposentos. Como a chuva cessara momentaneamente, Étienne foi fazer uma ronda com os cães antes de ir para a cama, enquanto a sua mulher cobria de cinza as brasas da lareira que, assim, regressariam facilmente à vida na manhã seguinte. A casa, como um punho sólido e amigo, fechou-se sobre aquele novo hóspede para satisfação geral.
Sinto uma certa vergonha disse Fiora enquanto Léonarde a ajudava a despir-se em aceitar que este jovem se dedique desta maneira ao meu serviço. Seria muito mais feliz e rico se nunca me tivesse conhecido.
Feliz por trás de uma escrivaninha? Lembrai-vos, meu cordeirinho, ele passava o tempo todo no jardim da dama Agnelle. Limita-se apenas a mudar de jardim. E confesso-vos que a sua presença sob este tecto me parece bem reconfortante. Nada como uma devoção sincera para viver em paz.
Nessa noite, Fiora adormeceu com uma confiança e uma alegria que não sentia há muito, embalada pelo crepitar ligeiro da chuva que o vento vindo de oeste projectava contra as janelas do seu quarto. A chegada de Florent parecia-lhe um bom augúrio, porque a simplicidade do coração do jovem era daquelas que fazem nascer em seu redor, senão a felicidade, pelo menos uma espécie de contentamento que se lhe assemelha um pouco. As duas mãos da jovem estavam pousadas sobre o ventre, como costumava fazer para se sentir mais próxima daquela pequena vida que palpitava dentro dela e para melhor a proteger contra o que quer que fosse. Tudo estava bem naquela noite de Primavera que acabava de trazer um amigo...
"Fiora e o Papa Sisto IV" отзывы
Отзывы читателей о книге "Fiora e o Papa Sisto IV". Читайте комментарии и мнения людей о произведении.
Понравилась книга? Поделитесь впечатлениями - оставьте Ваш отзыв и расскажите о книге "Fiora e o Papa Sisto IV" друзьям в соцсетях.