A partir da manhã seguinte, Florent, que se levantara cedo, tomou o seu lugar nos usos e costumes do solar como se nele tivesse nascido. Enquanto esperava que Étienne o levasse a dar a volta da propriedade, foi buscar água para Péronnelle e renovou, por toda a casa, a provisão de lenha. Estabeleceu-se instantaneamente um entendimento entre ele e a boa mulher que, com o correr dos dias, se pôs a imaginar que um filho, talvez um pouco grande demais, lhe fora enviado do céu como um presente. Quanto a Étienne, o silencioso, o ardor no trabalho do jovem parisiense, o seu amor pela terra, pelas plantas e pelos animais conquistaram-lhe, em breve, a estima. Tinha prazer na sua companhia a todos os instantes.
Fiora não o via muito. Florent colocou, logo a partir do primeiro dia, muita discrição nas suas relações com a jovem castelã, contentando-se em avistá-la enquanto ia e vinha pela propriedade e em trocar algumas palavras quando ela aparecia no jardim. E Léonarde, que temera, por um instante, ver sem cessar pelos cantos da casa o seu rosto extasiado de amor, louvou-o pela sua conduta sábia. Além disso, tinha de admitir que o antigo aprendiz de banqueiro era, em questões de jardinagem, uma espécie de pequeno génio: à medida que lhes prodigalizava os seus cuidados, os canteiros enchiam-se de cor e perfume. Nunca se tinham visto goivos tão grandes e perfumados nem bons e peónias tão floridas. Florent, ao percorrer os arredores em busca de novas plantas, tornara-se amigo do jardineiro do castelo de Plessis, que lhe prodigalizava conselhos e sementes com uma generosidade real. Quando começaram as longas tardes do começo do Verão, Florent, vendo Fiora e Léonarde demorarem-se num velho banco de pedra para ali respirarem o odor das ”suas” rosas, da ”sua” madressilva e do ”seu” jasmim, sentiu-se pago pelas suas penas e agradeceu ao Senhor de todo o coração por lhe permitir estar perto daquela que era a mais magnificente estrela da Sua Criação...
Assim ia a vida na Casa das Pervincas, infinitamente doce e calma, longe do tumulto e furores da guerra, sem que ninguém imaginasse que nesse mesmo momento se representava um desses dramas suscitados pela loucura dos homens. Fiora preparava o nascimento do filho de Philippe sem imaginar por um único momento que em Dijon esse mesmo Philippe iria em breve subir para o mesmo velho cadafalso da praça Morimont que vira morrer Jean e Marie de Brévailles. O curso irisado do Loire e a fresca espessura das florestas encerravam-na numa espécie de anel mágico, no qual vinham quebrar-se os sons longínquos do século.
CAPÍTULO III
O PRISIONEIRO
À medida que se aproximava a data do parto, Fiora, longe de se abandonar às alegrias do repouso e às doçuras das almofadas macias, dava provas de uma actividade crescente. Não estava muito tempo no mesmo lugar para pavor de Léonarde e Péronnelle, que temiam a cada instante um acidente quando a viam trotar pelo jardim e pelo bosque, subir para a mula para ir orar ao priorado de Saint-Côme ou ir buscar ovos à granja. Havia nela uma alegria que a atirava para a frente. Parecia-lhe que, quanto mais se mostrasse forte, mais o seu filho seria vigoroso e bem constituído.
Foi assim que no vigésimo quinto dia do mês de Agosto, que era o dia de São Luís, padroeiro do Rei de França, convenceu Léonarde a acompanhá-la a Tours para ver a cidade adornada e rezar uma última vez no túmulo do grande São Martinho. Já lá fora diversas vezes, sentindo-se com isso extremamente bem, com uma grande paz de alma e queria agora tirar dessa oração uma energia suplementar para a prova que a esperava.
Léonarde torceu um pouco a orelha. A criança talvez se fizesse anunciar dentro de uma semana e não era prudente aventurar-se numa cidade em festa, mas Fiora estava tão firmemente agarrada à sua ideia que foi impossível convencê-la do contrário. Até porque Florent pôs fim à questão dizendo que poriam uma sela de mulher bem estofada na mais doce das mulas e que, de
1 A sela de amazona ainda não tinha sido inventada a sua autora foi Catarina de Médicis As mulheres viajavam numa espécie de cadeira de espaldar, onde iam sentadas como numa cadeira vulgar
qualquer maneira, ele escoltaria as damas para as proteger se houvesse grandes multidões nos adros das igrejas e nas ruas.
Nesse dia fazia um tempo delicioso, de uma grande doçura e bem agradável depois dos fortes calores que, durante uma quinzena, tinham caído sobre a região, obrigando Florent a uma intensa actividade para manter o seu jardim vivo e fresco. O céu estava de um azul-profundo, semeado de pequenas nuvens brancas que se pareciam com cordeiros e toda a natureza, lavada pela grossa chuva que se seguira a uma vigorosa tempestade, resplandecia de verdura e de flores, como se estivesse na sua primeira juventude.
Enquanto a ajudava a sentar-se na pequena cadeira fixada na albarda da mula, Florent pensava que Fiora, a despeito da sua cintura deformada, estava mais bela do que nunca. O seu vestido de algodão fino e o véu fixado num toucado em forma de crescente eram do azul terno da flor do linho, reflectindo-se nos seus olhos e fazendo cantar a sua tez delicada. Nenhum sinal desagradável lhe desfeava o rosto e o bater das suas pálpebras dava-lhe ainda mais encanto. E o bravo jovem, com a simplicidade do seu coração, perguntou a si próprio como podia um homem, que tivera a incrível sorte de a ter nos seus braços, de beijar os seus doces lábios, de mergulhar as mãos naquela cabeleira sedosa, aceitar viver, nem que fosse por um único dia, longe de tanta graça. Era preciso que aquele conde de Selongey fosse um grande imbecil e, pela sua parte, Florent esperava nunca mais o ver. Entraram em Tours pela porta de La Riche, a mais próxima do solar e foram imediatamente apanhados pelo encanto. A despeito da ausência do Rei, que não voltaria a ver, talvez, antes do Outono, a cidade parecia uma noiva em dia de casamento. As janelas tinham as mais belas colchas, as mais belas tapeçarias, picadas com todas as flores dos jardins. Se bem que fosse sexta-feira, todos os habitantes tinham os seus trajes de domingo. No entanto, e porque era dia de mercado, as lojas estavam abertas. Entre dois ofícios religiosos, todos, naquela manhã, se dedicavam às suas ocupações.
Em redor da antiga basílica de São Martinho, do seu claustro e das suas torres românicas, a animação já era grande, porque era um dos mais importantes locais de peregrinação da Europa. Há mais de mil anos que, nas margens do Loire, naquele mesmo local, o corpo de Martinho, soldado romano tornado bispo e confessor, por amor, dos seus irmãos humanos, atraía multidões vindas de todos os horizontes. Dizia-se que o santo ressuscitara três mortos e restituíra a saúde a milhares de doentes incuráveis. Leprosos, enfermos, dementes a quem chamavam lunáticos e até possessos, tinham-se visto livres dos seus males e purificados devido ao simples contacto com o seu túmulo. Assim, os peregrinos vinham, numerosos, em busca daquela esperança que era, além disso, uma etapa do ”caminho das Estrelas”, a longa estrada que, dos países nórdicos, ia até Santiago de Compostela.
A igreja actual era a quarta a ser construída sobre o sepulcro de Martinho, morto por volta do ano 400. Houvera, primeiro, um modesto oratório de madeira e depois uma capela que perecera num incêndio sem que, aliás, o santo sepulcro tivesse sido atingido. O bispo Henri de Buzançais, após os terrores do ano mil, tinha mandado construir uma basílica, mas esta teve algumas desgraças e foi necessário reconstruí-la entre o xi e o xiI séculos, ao ponto de a igreja ser praticamente nova. O Rei Luís e a sua generosidade velavam por ela. O soberano assegurava a sua manutenção e quase não se passava um ano sem que fizesse uma doação, apesar de a sua grande devoção ir para Notre-Dame de Cléry.
Como era hábito, a igreja estava cheia quando Fiora e Léonarde, deixando Florent a guardar as montadas, se esforçaram por penetrar nela. Homens, mulheres, velhos, crianças, peregrinos de passagem ou doentes na maior parte, amontoavam-se sem brutalidade, esperando até, sensatamente, a sua vez de se aproximarem do sepulcro através do deambulatório que rodeava o coro. Todos cantavam louvores a Deus e à glória do grande São Martinho, ao mesmo tempo que os monges faziam os possíveis para os canalizar e, sobretudo, convencer aqueles que tinham chegado ao fim a dar lugar aos outros. Alguns, com efeito, agarravam-se às grades douradas, pretendendo ficar ali até que
1 Onde está enterrado.
o voto fosse satisfeito e suplicando que não os arrastassem dali. No entanto, a era das grandes peregrinações tinha passado. O século presente era de uma fé menos exaltada e já não se ia tantas vezes a Roma e ainda menos a Jerusalém. Apenas Compostela, na Galiza, continuava a atrair as multidões que percorriam os numerosos caminhos que estrelavam a Europa, mas as grandes peregrinações da Páscoa já estavam longe naquele mês de Agosto. São Martinho de Tours, assim como Lê Pu, Conques, o Mont Saint-Michel-au-péril-de-la-mer e muitos outros grandes centros de piedade conservavam, no entanto, numerosos fiéis, os que não temiam uma ou duas centenas de léguas.
Vendo tanta gente, Léonarde quis evitar a Fiora uma espera em pé demasiado longa, mas a jovem resistiu. Esta decidira que naquele dia pediria a protecção do santo e nenhuma força humana a impediria de tomar o seu lugar na fila de espera. Aliás, apercebendo-se do seu estado, uma peregrina e um velho monge, que dirigiam um grupo de fiéis vindos da Normandia, arranjaram-lhe um lugar e ela pôde aproximar-se do relicário que, parecendo um sol, irradiava no coro do venerável santuário. As centenas de círios que o rodeavam acendiam cintilações no revestimento de ouro e prata e nas profundezas das pedras preciosas de diversas cores que nele estavam encastoadas.
Fiora ajoelhou-se junto do sepulcro e estendeu a mão através das grades para chegar a uma das placas de ouro cinzeladas. Os seus dedos encontraram um grande topázio polido, que acariciaram. Ao mesmo tempo, dirigiu ao habitante do precioso sarcófago uma oração fervorosa, talvez a mais ardente que formulava há muito tempo. A fé perdida durante meses voltara com a certeza de ser a única no coração de Philippe, mas nunca atingiria o grau de devoção confiante e pleno de certeza de Léonarde. Para a velha solteirona só havia uma solução para os problemas que não conseguia, por si só, vencer: o recurso a Deus, à Virgem ou ao santo mais apto, segundo a sua especialidade, para a satisfação do pedido. Naquele dia, e porque pedia pelo seu filho, Fiora rezou com todas as forças da sua alma.
Ao deixar a igreja, a jovem sentia-se mais serena. O bebé já podia vir ao mundo. Fora confiado a São Martinho e ela agora estava certa de que seria belo, forte e puro de todo o mal. Assim, distribuiu esmolas pelos mendigos que solicitavam a sua caridade, feliz por ouvir as bênçãos com que eles a cobriam e os votos que formulavam pela sua maternidade.
Pelo braço de Léonarde, demorou-se um instante a seguir as evoluções de um saltimbanco que rodopiava numa corda estendida entre duas estacas. O rapaz era jovem, ligeiro, sorridente e no seu fato matizado, parecia uma chama volteando no ar pela vontade de um mágico invisível.
Se quereis fazer compras, temos de nos apressar aconselhou-a Léonarde. Vamos ter com Florent.
Ao aproximarem-se do local onde tinham deixado as mulas, as duas mulheres viram que o jovem estava a conversar com um estrangeiro. Estes não eram raros em Tours, tal como nos outros lugares santos, mas o interlocutor de Florent apresentava um aspecto suficientemente particular para chamar a atenção. Alto, magro e até ossudo, o seu rosto em forma de lâmina de faca mostrava uma tez bronzeada e uns olhos negros de mediterrânico. O seu fato era o de um mercador abastado, mas tinha uma certa maneira de levar maquinalmente a mão à cintura, como se procurasse o punho de uma espada, e isso despertou Fiora.
Ao vê-las aproximarem-se, o homem saudou profundamente as duas mulheres, endereçou a Florent uma despedida desenvolta com a ponta dos dedos e perdeu-se na multidão.
Quem era aquele homem? perguntou a jovem.
Um mercador. Veio comprar sedas, mas o que é engraçado é que é vosso compatriota, dona Fiora.
Florentino? Parece-me que, se já o tivesse visto, lembrar-me-ia!
Não. Não é de Florença. É de uma outra cidade cujo nome esqueci. E não me pergunteis o seu, porque compreendi-o mal e seria incapaz de vo-lo repetir...
Interessante disse Léonarde, zombeteira. Podeis, ao menos, dizer-nos o que queria?
Posso. Ele reparou na beleza das nossas mulas e queria comprar uma para substituir a que morreu de doença. É claro que recusei sem lhe dar a mínima esperança. Foi por isso que se afastou ao ver-vos aproximar, sem dúvida para não parecer importuno.
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