O que supõe uma grande delicadeza disse Léonarde. É curioso, mas não me parece que seja homem para tais escrúpulos. Fiora, essa, não disse nada. Não gostara do olhar que o desconhecido lhe dirigira. Não se parecia, de todo, com os olhares masculinos a que estava habituada. Não tinha qualquer admiração, qualquer doçura, antes uma crueldade fria juntamente com uma expressão de triunfo, que lhe provocara um arrepio na espinha. Fora como se, saindo de um local iluminado, se visse subitamente em frente de um abismo, no fundo do qual rastejassem animais imprecisos. Estais tão pálida! notou Léonarde de súbito inquieta, Quereis regressar? Não, não, estou bem! Não quero regressar sem ter feito as minhas compras. A má impressão desapareceu imediatamente face à luz quente do Sol e à alegria geral. Os sinos despejavam na cidade um carrilhão pleno de alegria e Fiora adorava o som dos sinos: atribuiu rapidamente o que acabava de sentir a um aumento de nervosismo devido à gravidez e foi alegremente que subiram todos para as mulas para percorrer a Grand Rue que atravessava a cidade de leste para oeste, desde a porta Billault, ou da porta de Orleães à porta de La Riche. O espectáculo da rua, apesar de não ser um dia de festa, era recreativo. Um pouco por toda a parte demoliam-se os edifícios mais velhos para construir outros novos e não era raro ver uma bela casa de madeira nova, de empenas flamejantes, com a loja aberta no rés-do-chão e um jardim nas traseiras, vizinho de um terreno ainda vago ou de um casebre que ainda não recebera o golpe de picareta dos demolidores. O Rei Luís, que gostava mais daquela cidade do que da sua capital, não cessava de se preocupar com ela: queria-a rica, poderosa, soberba e mais bem construída do que qualquer outra. Fora ele que decidira estabelecer em Tours fábricas de tecidos de seda, de ouro e de prata, cuja reputação começava a estender-se para lá das fronteiras e os diversos portos estabelecidos no Loire, na base das altas muralhas que cercavam a cidade, tinham uma actividade incessante. Porque a seda bruta, cujo único fornecedor era até há pouco Florença, era trazida do Oriente pelos navios franceses. E os burgueses de Tours, que no princípio se tinham insurgido contra a presença de operários vindos do lado de lá dos Alpes, tinham acabado por compreender que, uma vez mais, o seu Rei tivera razão e que a sua visão, a longo prazo, lhe permitia, sempre, ultrapassar os acontecimentos e produzir riqueza.

Por sua parte, Fiora, esquecendo que aquele comércio fazia concorrência à cidade da sua infância, gostava da loja de mestre Guin de Bordes, que passava por fornecer os mais belos tafetás, sobretudo aquela seda espessa a que começavam a chamar o ”gros”NI de Tours. A loja, com as suas madeiras escuras admiravelmente enceradas e os armários a abarrotar de maravilhas, agradava-lhe pela sua elegância e Fiora encontrava nela a boa companhia e a cortesia que lhe lembravam as lojas de outros tempos.

Queria um vestido novo, como acontece muitas vezes quando se vive durante muitos meses com a cintura deformada, comprou alguns de tafetá de um belo vermelho-coral e depois escolheu um tecido de veludo cor de ameixa para Léonarde e um belo pano de um azul quente que destinava a Péronnelle. Florent carregou tudo na sua mula e dirigiram-se para Carroi-aux-Herbes, perto do castelo, que dominava a imensa ponte sobre o Loire e as suas ilhas até ao bairro de Saint-Symphorien. Havia lá um certo albergue, célebre pelos seus patês de lúcio e Fiora, como lhe acontecia frequentemente desde que estava grávida, morria de fome. Instalaram-se, portanto, sob uma ramada contígua ao albergue para ali restaurar as forças da futura mãe.

O local era encantador, um pouco afastado da rua que, no prolongamento da ponte de vinte e cinco arcos, estava sempre muito animada. Através da parra já moribunda das vinhas apercebiam-se as pimenteiras azuis, os cata-ventos do castelo e a

Símbolo dos tecidos de Tours, como a renda de Bruxelas


flechá da capela onde Luís XI tinha casado com Carlota de Sabóia e onde os seus pais, Carlos VII e Maria de Anjou, tinham feito o mesmo. Esses acontecimentos não tinham sido suficientes para ligar o Rei àquela fortaleza elegante, tendo preferido Plessis.

Depois de terem provado o patê, regado com um excelente vinho de Vouvray, os três companheiros concederam a si próprios um momento de descontracção mastigando umas ameixas de conserva. A verdura onde estavam abrigados protegia-os do sol que aquecia os telhados das casas e iluminava o Carroi, mas o seu calor era normal para a época, não era a canícula que tinham tido de sofrer. Fiora e Léonarde sentiam-se fundir numa sensação de bem-estar que, geralmente, prenuncia o sono.

Não seria melhor regressarmos? perguntou esta. Não é propriamente um local onde devamos fazer uma sesta.

Está-se aqui tão bem! replicou Fiora. Só mais um bocadinho.

Nem por todo o ouro do mundo seria capaz de dizer porque lhe apetecia demorar-se ali. Talvez por causa daquela profunda paz, total, que a banhava, uma paz tanto mais preciosa quando se adivinha obscuramente que não vai durar, que se vai passar qualquer coisa e que o combate vai recomeçar. Evidentemente, não imaginava que esse combate pudesse ser outro que não o parto próximo e no entanto...

A quietude em que a cidade inteira parecia estar mergulhada voou subitamente em estilhaços. Ouviram-se gritos que ninguém compreendeu, sons diversos e o pisar de centenas de pés que corriam sobre o pavimento da rua. O estalajadeiro apareceu à porta para perguntar o que se passava e viu que toda aquela gente corria para a ponte. Alguém berrou:

Um prisioneiro! Trazem um prisioneiro numa jaula! Na ponte!

Fiora pôs-se imediatamente de pé, movida por uma força interior que não podia controlar.

Vamos ver!

Sois louca? protestou Léonarde. Para que ides contemplar um desgraçado?

. Não sei, mas tenho de ir. Para o terem metido numa jaula

é porque deve ser um prisioneiro importante.

É insensato! Isso não é bom para vós nem para a criança.

Ajudai-me, vós! acrescentou ela na direcção de Florent, que também se levantara e olhava para a jovem com inquietação.

Mas este abanou a cabeça sem responder. Conhecia suficientemente bem Fiora para saber que quando ela franzia a testa e cerrava os dentes, era impossível fazê-la desistir de uma decisão. Desta vez, a jovem contentou-se em virar o olhar para o seu jardineiro.

Vinde comigo, Florent! disse ela. Deveis ser suficiente para me proteger da multidão. A dama Léonarde espera-nos aqui!

Não faltava mais nada! protestou esta. Começo a estar farta de vos repetir que onde fordes, também eu vou. No entanto, exijo que levemos as mulas. Ir a pé seria uma loucura. Mas continuo a dizer que um tal espectáculo não foi feito para uma jovem perto do fim... aliás, para mulher nenhuma!

Um instante mais tarde, empoleirada na sua mula guiada por Florent o jovem achara mais prudente deixar a sua no albergue com as compras Fiora avançava com dificuldade no meio da multidão que se formara aos primeiros gritos e se amontoava para transpor a porta de Saint-Genest, que dava directamente para a ponte. A corrente passava lentamente, porque naquele local o Carroi-aux-Herbes, separado do castelo por um profundo fosso alimentado pelo Loire, estreitava. Em breve não correria de todo. Desencorajado, Florent virou-se para Fiora, que dava ares de impaciência.

Faríamos bem se esperássemos aqui! O prisioneiro não vai ficar na ponte. Vai, certamente, entrar na cidade. Vê-lo-emos ao passar.

Antes que a jovem pudesse ter respondido, o jardineiro interpelou um dos soldados que guardavam a ponte levadiça do castelo.

Sabeis para onde conduzem o homem que está a chegar?

Para o castelo de Loches, talvez... a menos que seja para Plessis... ou então para casa de um notável qualquer!

Para casa de um notável? Para quê?

Ora, para que o guarde! É um sinal particular da benevolência do nosso sire, confiar um prisioneiro a alguém que ele estima respondeu o homem, divertido com a cara pasmada do jovem, que, aliás, não se deu por satisfeito e parecia querer ir ao fundo da questão:

Será preciso que ele tenha uma grande porta, o vosso notável, para meter por ela uma jaula com o respectivo ocupante!

É mais simples do que isso explicou o outro, imperturbável atira-se abaixo um bocado de parede e reconstrói-se depois. Avisam-se os pedreiros com antecedência. Queríeis atravessar a ponte? acrescentou ele lançando um olhar de admiração para Fiora. A jovem dama mora, talvez, em Saint-Symphorien?

Não! Só queríamos ver o cortejo. Moramos em Plessis acrescentou ele com ar negligente.

Nesse caso, ficai perto de mim. Não o perdeis de certeza. Por falar nisso, lá vem a multidão.

Galantemente, depois de, com uma piscadela, ter avisado a outra sentinela, o homem levou as duas mulas para a ponte levadiça do castelo, o que assegurou às duas mulheres um local óptimo, ao abrigo da confusão. Era tempo. Todos aqueles que não tinham podido transpor a porta cuja alta ogiva se destacava no céu fulgurante, foram empurrados para trás por uma força contra a qual nada podiam, ao mesmo tempo que aqueles que estavam na ponte não podiam recuar, já que o cortejo do prisioneiro lhes cortava a retirada. Alguns terão, sem dúvida, caído à água, porque se ouviram uns gritos e uns ”plof” estrondosos. Fiora sentiu apertar-se-lhe o coração, esperando perdidamente que aquele prisioneiro especial não fosse o seu marido. Esse temor tinha a ver com certas palavras que chegavam até ela:

Parece que é um rebelde borgonhês! Bateu-se contra o nosso Rei! Um dos homens daquele maldito Temerário! Palavras vindas não se sabia de onde, gritos lançados por gente que, no fundo, não sabia nada, injúrias estúpidas, gratuitas e demasiado levianas face a um homem reduzido à impotência por fim, sob o arco de ferro forjado, apareceu a jaula, minando a vaga de cabeças. Aos solavancos sobre as pedras do rio que pavimentavam a ala, uma espécie de plataforma grosseira avançava com dificuldade no meio de um grupo de cavaleiros de lança em punho e, sobre essa espécie de plataforma, uma jaula suficientemente alta para que um homem se pudesse manter de pé, uma jaula feita de grossas ripas de madeira com cantos de ferro, na qual um homem, vencido, talvez, pelo calor do Sol contra o qual nada o protegia, estava sentado.

Não se lhe podia ver o rosto, porque a sua cabeça estava escondida nos braços pousados sobre os joelhos, talvez para se proteger dos projécteis de toda a espécie que a populaça lhe lançava com gritos de morte. Aquele homem era um daqueles borgonheses contra os quais fora preciso combater mais de um século e mesmo naquela região, onde a vida era doce, o rancor era tenaz. À medida que a carroça avançava, a multidão urrava cada vez mais e os guardas tiveram que fazer uso das suas lanças para a manter à distância. Sem essa precaução talvez ela tivesse, sem saber nada do cativo, tomado a carroça de assalto.

Um suspiro de alívio saiu do peito de Fiora. Philippe era moreno e os cabelos daquele, se bem que muito sujos, eram da cor do trigo. O desgosto apertou-lhe a garganta. Detestava, com todas as suas forças, aquela gente, tão amável e tranquila em tempos normais, mas que, à vista de um desconhecido do qual se dizia ser um inimigo, se transformava numa horda de lobos. A jovem olhava para aquela cena cruel sem conseguir desviar o olhar e sentiu uma imensa piedade por aquele infeliz que devia sofrer o martírio de mil mortes com aquele dia de Verão e sem uma gota de água. O seu olhar perfurou Florent:

Vai-me buscar um jarro de vinho fresco ao albergue!

O tom era daqueles que não admitiam réplica. Compreendendo que, se não obedecesse, arriscava-se a ser despedido naquele mesmo momento, Florent não discutiu, esquivou-se rapidamente e regressou alguns minutos depois com um pichel que entregou, tremendo, à jovem.

Que pretendeis fazer? murmurou Léonarde que, entretanto, tinha compreendido.

No entanto, Fiora consentiu em explicar:

Talvez tenhamos conhecido este homem no ano passado, no campo do duque Carlos. Quero dar-lhe algum socorro.

E, sem esperar mais, forçou a mula através da multidão na direcção da jaula.

Minha senhora! Onde ides? gritou o soldado que lhe oferecera o refúgio da ponte levadiça.

Onde devo ir! Aquele homem é um prisioneiro. Não é um condenado!

Perante o avanço do animal, a multidão abriu-se quase sem protestar. Aquela mulher tão bela e visivelmente perto do fim da gravidez impunha-se-lhe. Mas um dos lanceiros quis opor-se:

Que fazeis? Fora daqui!